ENTREVISTA COM O TEN CEL PM PEIXOTO SOBRE O CONTEXTO DO RACISMO
Debater o racismo não é tarefa das mais fáceis, principalmente numa sociedade em que o negro, em sua maioria, vive à margem e em condição de inferioridade. O racismo estrutural, por sua vez, acaba por pactuar essa pecha quando persiste, e de forma perversa, que apenas uma minoria de negros ocupe os espaços de poder ou protagonize as tomadas de decisões. Contudo, a discussão sobre o tema é necessária, tanto quanto é vital a inserção de políticas afirmativas que venham a combater a prática do racismo, e dessa forma criar condições de igualdade.
Instituído pela Lei Federal nº 12.519/2011, o 20 de novembro assinala o Dia Nacional da Consciência Negra. A data, marcada na história do Brasil como o dia da morte de Zumbi dos Palmares – grande líder quilombola considerado mártir da luta e resistência negra contra o sistema escravista – ascendeu ao Novembro Negro, mês de debate e reflexão sobre o papel do negro na formação da sociedade brasileira e sua marginalização, bem como o combate ao racismo, além de se configurar como um importante momento para as articulações políticas de reafirmação, consolidação e ampliação de políticas de Ações Afirmativas.
Na perspectiva do contexto racial e adentrando às Instituições Militares, a Força Invicta convidou o Ten Cel PM Paulo Sérgio Peixoto da Silva para um bate-papo. Além de contar um pouco sobre si, o Oficial apresentou sua ótica sobre a temática e trouxe importantes falas que nos servem de reflexão.
FORÇA INVICTA: Qual a história do Senhor com a Polícia Militar da Bahia?
TEN CEL PM PEIXOTO: Olha, é muito difícil resumir em poucas linhas mais de 37 anos de história, mas vamos lá! Sou, como digo sempre, filho de Dona Glória e Seu Zequinha, um casal de negros empobrecidos que tomou como missão criar seus dois filhos, renunciando de muita coisa. Minha história na PM começa quando um vizinho ofereceu a meus pais uma vaga no Colégio da Polícia Militar da Avenida Dendezeiros. Lá, fiquei até concluir o Ensino Médio. Entrei no Curso de Oficial da Academia da Polícia Militar, formado fui para o então Oitavo Batalhão e lá fiquei por quase 10 anos. Daí, fui para a então Diretoria de Promoção Social, APM, Instituto de Ensino e Pesquisa, Cordop, Instituto de Ensino e Gabinete do Comando Geral, na gestão do Coronel Santana, que vinha acompanhando desde a APM. O Coronel Santana foi meu mentor, aprendi muito com ele, é um grande amigo. Sob o seu Comando, fiz o primeiro seminário sobre racismo da PM, estando na APM, e ajudei a criar o Núcleo de Religiões de Matriz Africana da instituição. Depois da ida dele para Reserva, servi no Batalhão de Apoio Operacional, fui para a Coordenação de Interatividade dos Veteranos do Departamento de Promoção Social, de lá, a convite do Coronel Lázaro, assumi a Coordenação de Grupos Vulneráveis da Superintendência de Prevenção à Violência da Secretaria de Segurança Pública ao cabo de quase quatro anos, retornei à PM e estou hoje de volta ao Departamento de Promoção Social.
FORÇA INVICTA: Quais dificuldades encontrou no caminho?
TEN CEL PM PEIXOTO: Encontrei as dificuldades que todos os funcionários públicos sofrem quando querem cumprir sua missão com qualidade, criatividade e correção. Há principalmente as dificuldades de dispor de recursos materiais na quantidade e na qualidade que se necessita, bem como recursos humanos, nem sempre qualificados para o que você precisa. Entretanto, tais dificuldades nunca me impediram de fazer o que eu desejava, pois sempre sobrou boa vontade, criatividade e força para cumprir, além do que os nossos companheiros, sejam eles as Praças ou os Oficiais, na sua esmagadora maioria, foram e são pessoas extremamente comprometidas em realizar um trabalho de qualidade.
FORÇA INVICTA: O Senhor já sofreu algum tipo de preconceito baseado na cor? Se sim, qual/quais, onde aconteceu, como foi e qual desfecho?
TEN CEL PM PEIXOTO: Há que se entender que o preconceito, como você coloca, e o racismo explícito no Brasil não são episódios muito comuns. Eu, como todos os negros retintos, já fui alvo de olhares desconfiados em locais como restaurantes mais caros, em espaços, digamos mais sofisticados, onde a presença de negros é minoria. Já fui seguido por seguranças de estabelecimentos comerciais, já fui preterido por atendentes de restaurantes, lanchonetes, bares… acho que negros que não tenham sofrido estas pequenas, porém relevantes demonstrações de preconceito e discriminação, vivem distraídos. Eu faço questão de reagir e exigir o meu direito. Entretanto, em razão de ser religioso de matriz africana, já fui diversas vezes alvo de racismo religioso, notadamente por evangélicos radicais e intolerantes. Entendo, portanto, que estes eventos são mais um dos muitos casos da perseguição religiosa que este segmento vem sendo vítima nos últimos cinco séculos.
FORÇA INVICTA: Qual o papel do negro na história das Instituições Militares?
TEN CEL PM PEIXOTO: Olha, as bases econômicas deste País, a chamada acumulação primitiva de capital, foi construída com o trabalho do negro africano escravizado, que chegou aos milhões no Brasil por mais de três séculos e meio. Tal conjuntura se reproduziu em todas as instâncias do Estado brasileiro, inclusive nas Instituições Militares e policiais militares. Na contemporaneidade, é construir uma instituição mais humana e não racista, notadamente em uma sociedade cujas relações são estruturadas pelo racismo. Ademais, como diz Ângela Davis, “não basta não ser racista, há que ser antirracista” e cabe a nós, policiais militares negros, não reproduzir o racismo nas nossas ações e atividades.
FORÇA INVICTA: Quais direcionamentos podem ser apontados para ajudar as pessoas a combaterem o racismo estrutural?
TEN CEL PM PEIXOTO: Acredito que nós, enquanto sociedade, precisamos desconstruir a ideia de que o Brasil não é um País racista. Entendermos que vivemos em uma sociedade esquizofrênica, que vende para o mundo a cultura negra e ao mesmo tempo renega a sua origem africana. Compreendermos que o perfil do racismo dos Estados Unidos não é o nosso, em que o racismo funciona de forma escamoteada e que as pessoas que se revoltam contra esta realidade são alcunhadas de “mimizentas”. E, principalmente, que o racismo, enquanto concepção essencialista que advoga a existência de uma falsa hierarquia entre as raças, está presente em diversas instâncias e situações, não apenas nas chamadas injúrias raciais.
FORÇA INVICTA: Eu gostaria que o Sr. fizesse uma análise sobre a ocupação dos negros militares nos altos cargos da Corporação.
TEN CEL PM PEIXOTO: Em uma Corporação com mais de 70% de negros em seu efetivo é algo normal e legítimo. Entretanto, em outras instâncias, como o Parlamento, o Executivo e o Judiciário, se nos ativermos exclusivamente às Instituições Públicas, a realidade é bem outra. Vemos uma realidade bastante diversa. Por exemplo, a Capital mais negra do Brasil só teve um prefeito negro, assim mesmo para cumprir o restante do mandato de um outro. Esta situação demonstra a forma como o racismo estrutural conduz os caminhos das Instituições Públicas deste nosso Estado.
FORÇA INVICTA: Qual ou quais militar/militares negro/negros é/foram referência e marca/marcaram a história da Instituição, possibilitando que outros negros fossem estimulados aos cargos de tomadas de decisões?
TEN CEL PM PEIXOTO: Considero que o Coronel Santana foi uma figura emblemática na construção de uma Corporação diversa, não apenas pela criação do Núcleo de Religiões de Matriz Africana, mas pela liberdade com que concedeu aos policiais negros e de religião de matriz africana a liberdade de se assumirem adeptos deste segmento religioso, inclusive criando um canal de diálogo com a comunidade negra da Bahia. Ele, enquanto homem negro, abriu espaço para que a discussão do racismo chegasse aos cursos de formação de policiais militares.
FORÇA INVICTA: O que pode ser feito de forma individual e coletiva no sentido de eliminação do preconceito racial?
TEN CEL PM PEIXOTO: Prefiro falar de racismo mesmo. A PM não é uma instituição formalmente racista, pois nas suas instruções, normas e diretrizes não encontramos nenhuma orientação explícita para que seus servidores atuem de forma racista. Entretanto, não recrutamos policiais militares em outros países, em outros planetas. Eles e elas são recrutados na nossa sociedade e todas as suas virtudes, assim como as suas incorreções, como o machismo, a homofobia, o racismo, provavelmente se reproduzirão nas ações dos seus servidores. Ocorre que os policiais militares, uma vez servindo, são representantes desta Corporação e o uso imoderado da força ou o abuso de autoridade que este policial militar perpetrar respingará na Instituição. O remédio para este problema é o que estamos fazendo, falando das relações raciais no Brasil em todos os cursos de formação e pós-graduação, pois o racismo brasileiro vive no não dito, no silêncio.
O Ten Cel PM Paulo Sérgio Peixoto da Silva é Bacharel em Ciências Contábeis, Especialista em Gerenciamento de Segurança Pública pela PM de Goiás, MBA em Gestão de Projetos pela UCSAL e especialista em História e Cultura Africana e Afro-brasileira pela Fundação Visconde de Cairu. Entretanto, para ele, o mais importante é ser filho de Seu Zequinha e Dona Glória. Além disso, o Oficial é Ogan de Xangô, confirmado no Terreiro Ilê Axé Iya Nassô Oká e colega de turma do Tenente-coronel Copérnico, Presidente da Força Invicta, a quem ele muito estima.